16 de jun. de 2010

Dupla exposição

Em tons ígneos e flamejantes, o velho horizonte dita-lhe o mote: 'Alcance-me! Abrace-me! Envolva-me se for capaz.' O pensamento turvo pelo falso fogo reflete-se na ausência de cinestesia¹. Agorafílico² por natureza, contenta-se por hora a contemplar pela janela quem o desafia, agarrando-se, como ultima esperança, à leda sensação de presença no espaço.

O obturador de suas janelas se fecha na expectativa de reduzir o apelo exalado por seu velho inimigo que lhe entra pelos olhos e toma por completo seus pensamentos. No breve momento de penumbra, batalhas antigas se revelam na mente. Todas perdidas. Sem sangue, sem suor, nem cicatrizes. Apenas fraturas não expostas, lacradas na escuridão, prontas para emergirem no dia em que vencesse.

Por toda sua vida perseguiram-se mutuamente - ele declaradamente, seu inimigo em sigilo. Enquanto encalçava o horizonte, este guardava-lhe as costas, sorrateiro e moleque, fingindo ser algo conhecido.

Nesta altura não há mais luta. A gravidade prende-o ao chão e a inércia tomou-lhe as rédeas. Por cansaço pediu trégua, após concedê-la tantas vezes a seu inimigo durante as trevas entre os dois crepúsculos. Agora era seu o ocaso. O lusco-fusco vespertino indicava que seu inimigo havia concedido-lhe o descanso temporário. Mas só um dos dois teria amanhecer.

Seu obturador fecha-se novamente, mais devagar desta vez. Não pelo brilho que lhe entra, mas pelo pensamento que lhe ocorre. Realiza neste instante que na luta travada não houveram vencedores nem derrotados. Aquele inimigo era só seu, de mais ninguém. Se por certo não conseguiu alcançá-lo, este não alcançou-o também. Expõe agora suas fraturas, sentindo-se realizado, e põe-se junto com seu horizonte, seu velho inimigo amado.



Ricardo Pessica

¹ cinestesia: percepção dos movimentos corporais
² agorafílico: que gosta de espaços abertos

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